20080227

história fantástica de intrigas, amor e paixão – capítulo 3

Obviamente, depois do dito episódio as coisas mudaram um pouco no tocante às recomendações e a variedade de castigos/corretivos aumentou significativamente. Não satisfeitos com o flagelo físico, meus pais optaram por aderir à moda do sacramento da dor emocional.
Consiste em ameaçar o unigênito com a primogenitude. Sacou? Deixar de ser o único pra ser o mais velho.
A Usurpadora [vulgo ‘irmã caçula’] conferiu ao nosso lar doses diárias de discórdia e maledicências, munida sempre de habilidades muito competentes: mijar, cagar, gritar. Nesse ínterim eu já tinha desenvolvido no mínimo uns 7 métodos diferentes pra me estrepar na escola e em casa com a língua grande e a cara de fuinha. Minhas réstias de atenção ameaçadas por um feto gritavam por socorro. Foi então que o oráculo infantil chamado Xuxa Meneguel me deu uma luz [eu sempre soube que ‘lua de cristal me deixaria seqüelas por toda vida, mas quis assistir].
Tá legal. Não foi nada premeditado já que aos oito anos eu ainda achava que a vovó Mafalda era mulher. Não tinha QI pra arquitetar planinhos malignos maléficos do mal como o que rendeu uns milhões pro Macaulay Culkin em The Good Sun.
O relevante é que a coisa funcionou. Anote aí. Você vai precisar de:
1 - Professora com disfunção cerebral mínima – uma unidade;
2 - Uns 0,98% de credibilidade com os pais;
3 - Dom interpretativo infantil – duas unidades;
4 - Um “porta-consciência” para esconder a bichinha de si quando for necessário;
5 - Tesoura sem ponta;

Bem-aventurado o pai que matricula filho hiperativo em escola presbiteriana. Eu já cursava a segunda série no Reverendo Jonas Dias Martins quando aconteceu pela primeira vez. Tudo bem que depois de certo tempo a gente pega gosto pela coisa e não há como evitar, mas o prazer sobrenatural de cometer tal ato não tira o fardo que se carrega quando a primeira vez é a sua. Aos oito anos ninguém pode estar psiquicamente preparado, mas aconteceu.

Cheguei atrasada na escola.

Amigo eleitor, eu, 10 anos distante da maioridade, já enfrentava a dura vida dos coletivos pela cidade. Saí da porr$% da casa da amiguinha atrasada e cheguei depois do ritual macabro em que se fecham os portões de aço e cobre e granito da porr#$ da escola porque o ônibus também não ajudou.

Num desalento na frente da escola na beira da calçada me pus a chorar por ter chegado depois do sinal e em menos de 7 minutos a minha tenra face já se tingia de pecado. Sem coragem para bater no portão e dar de cara com a Marlene que me conduziria até a cadeira mal estofada da diretora pra levar o sabão, me vi no caminho de volta pra casa maquinando o que seria a minha primeira manifestação teatral pública.
- que é que você faz tão cedo em casa, lilinha?
- a professoraTatianaquebrouaperna. [olhos saltados simulando um semi-espanto]
- nããão. Sério?
- éééééé!
- nãããão. Jura?
- éééééé! Que coisa, não? – acrescentei num ar meio lúgubre [okay. O mais lúgubre que uma criança semi-alfabetizada poderia simular].
Notando os segundos de descrença me desfiz em pranto pela pobre professora estatelada no chão beeem na minha frente enquanto eu entrava no colégio e as aulas todas foram suspensas e foi um carro preto com um cara gordo que esmagou todos os ossinhos daquela perna roliça e pegou de cheio a direita dela e ela desmaiou na hora e tiveram que chamar a emergência e o gordo fugiu e ela ligou pra polícia e bla bla bla bla bla.

Pronto.
Por hora, a fase A do plano B ‘havia sido’ consumada com sucesso. A lorota malfadada colou e eu passei o resto do dia vendo TV. Porém... na manhã seguinte...

To be continued.
Rrá!

20080220

história bem maravilhosamente permeada de sangue, conflitos e final absurdamente feliz - capítulo 2

Meter-se a lançar pretenso best-seller para fazer boa figura entre as anormalidades literárias é besteira. Quando o mentor intelectual da farsa ainda é calouro nas esquizofrenias autobiográficas é besteira suicida. Quer ver piorar? é só contar para os dois ou três leitores nas últimas linhas do prólogo que aquela propaganda do subtítulo é pegadinha do malandro. Enfim, agora que as coisas já estão às claras e já se sabe que a história de amor e aquela firula toda era atrativo para atrair leitor de saga, não sobra alternativa senão prosseguir. Seria a única opção não fosse nobreza daquela que concebeu o título sobre história de amor e bla, bla, bla. Prometo permear a infeliz desventura do rebento (eu) com a fantástica fábula surreal do romance entre quem deu o ponta-pé inicial nessa coisa toda (meus pais).

Numa retomada ignorante do primeiro capítulo, a temática era o período pré-alfabeto. No tempo em que ser dona-proprietária de cabelo desgrenhado, óculos com a cara da Mônica nas astes e unhas roídas fazia de mim alguém extremamente especial [apenas para adultos, obviamente] eu descobri premissas pra vida:

1. falar bastante faz você parecer autoconfiante se souber fingir bem;
2. falar bastante faz com que você realmente acredite que tem domínio da situação [incluindo idas à orientação na escola, esquiva de castigo, papos de velhotas e papos de igreja];
3. falar bastante faz você parecer mais inteligente se conseguir concentrar todo o palavrório em cinco minutos [mesmo que seja um discurso de meia hora]. é só articular bem as palavras;
4. falar bastante também pode te fazer parecer bem idiota;
5. falar bastante te obriga a permanecer depois das aulas de castigo atrás da porta;

1989 acolheu minhas primeiras punições por querer parecer esperta.

Imagino que tenha sido num momento desses de ternura entre pais e filhos - desses em que a gente perde um pouco o raciocínio lógico e acha que coisas como levar criança pra jantar de adulto num ambiente sem criança funcionam - foi que os meus optaram por não me deixar vendo televisão com alguém enquanto jantavam na casa de velhos amigos. Eu fui junto.

uma das vantagens de crescer num lar cristão é o desenvolvimento de habilidades cristiânicas como o amor. Foi o amor que me moveu a pensar em fazer valer aquela oportunidade de mostrar para a minha mãe e seu cabelo de Sebastião da época que eu poderia freqüentar as reuniões de adultos sem problemas. Nas roupas eu não pude influenciar muito e fui vestida de bolo mesmo, mas o que importa é o conteúdo, rapaziada. Levei um livro de anedotas do Ziraldo e minhas melhores frases de efeito para entrar no contexto quando fosse necessário.

Era tanta confiança no pequeno prodígio aqui que eu nem me lembro de ter ouvido recomendações como 'não fale de boca cheia', 'não é permitido comentar as idas ao banheiro', 'peido, pum, arroto, virar os olhos. banidos'.

Não foi necessário. Nessa noite eu me comportaria como uma daquelas crianças encantadoras moldadas e aperfeiçoadas por gente do naipe de Mary Poppins e Super Nanny.
Na época eu completava meus seis primeiros anos e na empreitada literária há poucos meses, me interessei pela jocosidade dos trocadilhos e piadícas infames que eu nem entendia, mas provocar riso é sempre uma boa entre os adultos, né?
Na mesa, pedi atenção da maneira mais polida, versátil e infantil. Gritando. Funcionou. Naquela de quem fala mais alto, quando a adultaiada começa a se exaltar e tudo acaba numa grande gargalhada eu quis entrar na disputa também e ganhei destaque.
Com aquela feição de expectativa trocando olhares entre si que representavam alguma coisa parecida com “olha só que gracinha!” foi que aquele pessoal acompanhou a minha piadinha envolvendo elementos ingênuos como sorvete, saia e poste.

Mais ou menos isso:
- e aí, o joãozinho mandoua menina subir no poste e ela perguntou: ‘mas o sorvete ainda não mudou de sabor’ e ele disse: ‘aaah era só pra ver a sua calciiinha’.

Desde então eu descobri que toda criança passa por uma espécie de trote familiar para entrar no universo adulto. O que os pais chamam de surra.

20080215

história bem bonita de amor com final feliz - capítulo 1

o romance mais aguardado agora em fascículos.


Uma pancada das tramas literárias que tendem a virar trilogia-epopéia tem seu início, quando ainda em livro, com descrições de no mínimo duas orações sobre o clima [como se a porcaria da estação realmente ajudasse em alguma coisa no desenrolar do dramalhão que se segue]. Não consigo imaginar nem de perto a temperatura debaixo daquela vestidorama da minha mãe em outubro de 1984, quando meu pai conseguiu convencê-la a casar-se com ele. Pulamos a parte climática com a denúncia do local do enlace matrimonial. Rio de Janeiro, Duque de Caxias, em outubro [não que o mês vá alterar alguma coisa no imaginário de quem sabe como é que a coisa funciona naquele Rio de Janeiro cheio de mosquitos transmissores de doenças e mais quente que ferro de carvão].

De qualquer maneira, até o momento do altar de suor muita coisa aconteceu e é essa muita coisa que me proponho a transformar em prosa.
Depois de muitos solavancos no pau-de-arara da vida, meu pai, piauiense, 29 anos, tendo cursado até o quarto ano do primário, deu de Don Juanar a carioca mais cheia de banca do meio batista. De flerte com o filho do pastor da Primeira Igreja, quase patrimônio histórico do Rio, figurando entre os donos da maior membresia do velho oeste com seus 600 componentes ativo-atuantes-participantes. Coisa de batista. Minha mãe e outras cocótas faziam a vez pela frente suntuosa do templo carioca quando o magricela do meu pai deu com os dedos na nariga arrebitada da dona minha madre e como nos filmécos da época disse “eu ainda vou namorar você, Mirian”. É claro que ele deve ter dito isso num surto psicótico suicida e ter saído correndo depois ou, como manda a cartilha soarina, deu uma gargalhada gutural e fingiu estar brincado.

No fim, a estratagema furada funcionou e depois de um dramalhão que eu conto num outro dia, estamos de volta ao altar.

Quando criança eu cismei que aquela horrorosa que levava as alianças nas fotos era eu, dando vazão aos primeiros sinais do que seria o triunfante complexo de inferioridade estética que nos acompanha até a adolescência. Como eu ainda apresento traços fortíssimos do comportamento adolescil [que certamente me acompanharão até os anos 80 do século 21], essa imbecilidade acaba por tornar-se fato relevante. Isso da feiosa do buquê ser eu. Tempos depois, aprendendo cálculos no Kumon, notei o quão improvável seria que aquele monstrengo das alianças fosse a mesma lilóca. O que não amenizou a decepção nos momentos de espelho em que eu decorava cada dobrinha roliça no meu braço gordinho aos 7 anos.

A essa altura meu truque para engodar um possível leitor que ingressou na empreitada de engolir esse texto imaginando tratar-se da comovente história de amor dos meus pais já deixou de funcionar, não é? É a minha história. A-há! Te pegue-ei!